domingo, 28 de dezembro de 2008

Hebreus 9 e a propaganda antiespírita

O tiro interpretativo que sai pela culatra

Vamos ao ponto: “E, como aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo,...” (Hb. 9,27)

Os anos passam e sempre que num debate o tema é reencarnação na Bíblia, cedo ou tarde surge o famoso texto dessa questionável epístola, escrita aos hebreus. A manobra é previsível, vinda de católicos e protestantes inexperientes, quanto maior a inexperiência, maior a confiança em torno dessa passagem. Sacam dela como um hábil jogador que retira seu curinga escondido, e para escaparem de qualquer outro questionamento, usam-na como a fortaleza inexpugnável, o tiro de misericórdia contra a reencarnação, e dentre católicos e protestantes, há os que fazem isso com a emoção de quem pensa estar redescobrindo a América. Alguns neófitos mais empolgados, sentenciam que essa passagem é um problema insolúvel aos espíritas. E seria mesmo um grande problema, se o espírita julgasse a Bíblia infalível e inerrante de capa-a-capa, e não usasse a regra do “Examinai tudo. Retende o bem” (I Ts.5,21).

Diante tanto alarde em torno deste "argumento", seria injusto não emprestarmos um pouco de nossa atenção e reflexão a essa passagem. Iremos, portanto, analisá-la e submetê-la a todas as conseqüências para vermos se ela é, realmente, tão preocupante quanto se esforça por propagar a preocupada propaganda antiespírita.

Em primeiro lugar, e antes de qualquer outra coisa, precisamos saber quem é o seu autor. Se pesquisarmos sobre a autoria, o máximo que saberemos é que até hoje os estudiosos alinharam vários candidatos, mas ainda não chegaram a um acordo. Podemos comprovar isso de modo muito simples, e sem precisar ir a uma Biblioteca Pública ou Centro Cultural ou Faculdade de Teologia (embora eu também recomende esses meios), basta entrar em qualquer mecanismo de busca da Internet e digitar as palavras “autoria de Hebreus”. No caso do Google (http://www.google.com.br/), por exemplo, se assim fizermos podemos encontrar aproximadamente 116 mil referências de sites, muitos contendo estudos e monografias diversas, todas elas admitindo a inescapável falta de unanimidade entre os estudiosos, sobre a autoria de Hebreus. Essa dúvida permeia mesmo entre os que defendem Paulo, ou Apolo, ou Lucas, ou Barnabé ou algum outro candidato específico, como o mais provável autor inspirado da epístola. Podemos encontrar trechos do tipo:

Hebreus não designa seu autor, e não existe unanimidade de tradição em relação à sua identidade. Alguns sábios destacam algumas evidências que podem indicar uma autoria paulina, enquanto outros sugerem que um dos colaboradores de Paulo, como Barnabé ou Apolo, podem ter escrito o livro. A especulação provou-se infrutífera, e a melhor conclusão pode ser a de Orígenes, no séc. III, que declarava que só Deus sabe ao certo quem o escreveu.

Possibilidades na Autoria de Hebreus

O autor de Hebreus não se identificou pelo nome, no livro...

De fato, a autoria de Hebreus é, até hoje, assunto de discussão entre os peritos. Nunca se provou ter sido escrita por Paulo e nem tem o estilo dele. ...

Neste site católico, por exemplo:

AUTOR, LOCAL E DATA São igualmente imprecisos o autor, o local e a data da sua composição. As Igrejas do Oriente consideraram-na sempre como uma Carta paulina, apesar de muitos reconhecerem as suas diferenças em relação às outras Cartas de Paulo, sobretudo no que se refere à forma literária, à linguagem e estilo, à maneira de citar o AT e mesmo quanto à doutrina. A Igreja do Ocidente negou-lhe a autoria paulina até ao séc. IV e pôs, por vezes, em questão a sua condição de escrito inspirado e canônico.

A questão continuou controversa ao longo da história da exegese católica e protestante, mas actualmente é quase unânime a negação da autenticidade paulina.
Fonte: http://www.paroquias.org/biblia/?m=11

A importância de sabermos o autor está diretamente ligada ao que ele diz e às suas implicações. Vejamos o que ele diz:

1. “aos homens está ordenado morrerem uma vez”
2. “,vindo depois disso o juízo,...”

Independente do que se diga antes ou depois, o fato é que o trecho faz afirmações muito claras, suficientes para já chegarmos a algumas conclusões. Pra começar, o texto diz “ordenado”, e quem ordenou? Seja quem for, essa ordem diz que o homem só morre uma vez, sendo assim, ela nega que o homem possa morrer várias vezes e, conseqüentemente, nascer várias vezes, ou seja, ela realmente nega a reencarnação. Por outro lado, que um homem ressuscite e volte a morrer, ela também o está negando categoricamente. Então, se alguém quiser aceitar a “ordem” para negar a reencarnação, também terá que aceitá-la para negar as ressurreições, as quais, segundo autores bíblicos, teriam sido operadas por Jesus. Se a ignorarmos sob um dos aspectos, perdemos a força moral para tentar reforçar o outro, a título de “trampolim de acusação”, e isso abre precedentes para seguramente a ignorarmos também sob o outro aspecto. Se os que objetam contra a reencarnação, ignoram solenemente essa passagem, sempre que sua ênfase atinge outros textos que tratam de ressurreições, operadas por Jesus, por que não temos nós o mesmo direito de julgá-la, compará-la e, eventualmente, também ignorá-la? Se a encaramos com suspeita é porque, biblicamente, Jesus demonstrou ignorar por completo a existência dessa “ordem”, seja ao ressuscitar pessoas, seja ao ensinar a reencarnação. A crença de Jesus na reencarnação, segundo a mesma Bíblia, é algo que se fez revelado a poucos, tornando-se mais clara nessas passagens:

“E, se quereis dar crédito, João é o Elias que havia de vir. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.” (Mt.11,14-15)

“E Jesus, respondendo, disse-lhes: Em verdade Elias virá primeiro, e restaurará todas as coisas; Mas digo-vos que Elias já veio, e não o conheceram, mas fizeram-lhe tudo o que quiseram. Assim farão eles também padecer o Filho do homem. Então entenderam os discípulos que lhes falara de João o Batista.” (Mt. 17,11-13)

Conforme diz o texto, Jesus não esperou que todos fossem entender e aceitar, e somente três desses discípulos, tempos mais tarde, chegaram finalmente a entender que aquele mesmo Elias transfigurado já havia sido encarnado e desencarnado, tendo vindo e já cumprido a profecia, sob a identidade de João Batista. É fato incontestável, portanto, que Jesus ignorou que existisse a “ordem” de morrer uma vez ao revelar sobre a vinda de Elias, posto que, para ser João Batista, este teria que morrer outra vez. Também é fato constatado que o autor de hebreus, seja lá quem for, ensinou claramente o contrário. Temos, inelutavelmente, duas opiniões que divergem. Uma de um autor desconhecido, outra de Jesus. Jesus, muito sábio e prudente, tomou o cuidado de advertir que o discípulo não pode querer ser mais do que o mestre:

“Não é o discípulo mais do que o seu mestre, nem o servo mais do que o seu senhor.”(Mt.10,24)

Se ele enfatizou esse princípio, é porque julgava possível que isso pudesse acontecer. Se na pior das hipóteses, o discípulo apenas ensinar alguma coisa que de alguma forma diverge ou contradiz seu mestre, é recomendável, segundo o método de Jesus, que dediquemos nosso crédito ao mestre.

O autor da epístola aos hebreus, desconhecido até o momento, realmente negou a reencarnação, conforme estamos verificando, e com essa mesma força, também negou outras coisas. Não podemos e nem devemos omitir esses fatos. Podemos sim é ir em busca de um ponto neutro, e para isso, para sermos realmente imparciais, ou iremos aceitar o que ele diz na íntegra, ou iremos rejeitar também na íntegra. Não há como ficar no meio termo. Qualquer uma das decisões, naturalmente, traz a sua carga relativa de razões e implicações, e delas, seus responsáveis jamais poderão se esquivar.

Não penso que para o Espiritismo, a autoridade de Jesus deva ser submetida ao entendimento de quaisquer de seus discípulos, se este entendimento for contrário ao dele em algum ponto. Ao espírita estudioso, portanto, sobejam razões à prova de escrutínio para rejeitarem a autoridade de um desconhecido ou seja lá quem for, em detrimento da autoridade maior de Jesus, aquele que, segundo o Espiritismo, é e sempre foi o grande Rabi e maior exemplo de perfeição a que a humanidade pode aspirar.



Maurício C.P.